Morin, que acaba de completar 90 anos, falou à Folha por telefone de seu apartamento em Paris. A entrevista foi interrompida quando, em sua TV, uma orquestra começou a tocar a Nona Sinfonia, de Beethoven: "Será que você poderia me ligar em 10 minutos, ao final do primeiro movimento? A 'Nona' é o que eu mais amo nessa vida, não posso perder a introdução", desculpa-se cantarolando, e não espera a resposta.
Leia a seguir os principais trechos.
Folha - É impossível não relacionar seu novo livro, "La Voie", ao best-seller do diplomata Stéphane Hessel, "Indignai-vos!" (Leya Brasil). Parece que Hessel vem para dizer que "é preciso acordar" e o senhor vem para dizer "vejam que já há alguns caminhos para agir".
É exatamente o que diz Stéphane Hessel: "Não basta se indignar, leiam 'La Voie' de Morin". Claro, existe uma complementaridade entre nós, não somente nos livros, mas pessoalmente também.
E parece que vocês dois decidiram agora escrever um livro a quatro mãos?
Sim. Porque "La Voie" é um livro escrito sob a perspectiva planetária. Fala dos caminhos que é preciso escolher para evitar não somente uma catástrofe mundial (ou várias), mas também, talvez, para construir um mundo melhor, um mundo novo, um mundo que eu chamo de metamorfose.
"La Voie" indica que tudo deve ser reformado e que todas as reformas necessárias são interdependentes entre si. É preciso reformar a economia, as administrações públicas, a medicina, a justiça, as prisões, a alimentação, a agricultura... Tudo o que nos rodeia, enfim.
Mas insisto também sobre as mudanças necessárias ao indivíduo, dentro de nossa vida cotidiana. A compreensão do outro, o amor.
Pode parecer ridículo dizer que o amor precisa ser reformado, mas digo isso sobre as formas degradadas do amor --o amor superficial, o amor-cego, que só enxerga uma parte da pessoa amada, o amor-possessivo, o amor-ciumento.
Ou seja, é preciso reformar a sociedade em todos os seus aspectos, mas também reformar nossa maneira de viver. Parece uma tarefa gigantesca, mas acredito que essas mudanças já começaram, espontaneamente, espalhadas por todos os lugares do mundo.
O livro que preparo com Hessel é para mostar que, mesmo em um grande país como a França, que participa da Europa e da globalização, é possível uma outra política que fuja da máxima simplista que afirma que "é preciso crescer".
Vamos falar de uma política que é capaz de oferecer mais qualidade de vida a seus cidadãos e uma economia mais social, solidária e cooperativa, onde o comércio justo seja uma norma.
Mesmo um grande país como o Brasil, onde há riqueza material e também humana, esse tipo de política é possível. Sempre cito como exemplo os ensaios de democracia participativa de Porto Alegre.
Acredito num tipo de pensamento que não é binário --que não está dividido entre defender ou negar a globalização. É preciso globalizar e desglobalizar ao mesmo tempo. É preciso dar continuidade aos aspectos positivos que propiciam a solidariedade planetária entre os indivíduos e o enriquecimento trazido por essas trocas, mas é preciso desglobalizar para as realidades locais, regionais e nacionais.
Nosso pequeno livro vai se chamar "Le Chemin de L'Espérance" [O caminho da esperança] para mostrar que mesmo um país que esteja integrado ao contexto da globalização pode mudar significativamente sua forma de funcionar.
"La Voie" deveria então ser um título no plural --já que não há ali um só caminho, mas vários a serem seguidos.
Há uma multitude de reformas e de caminhos. Elas funcionam como os pequenos riachos, que afluem para os rios e que finalmente poderão formar um rio das dimensões do Amazonas. Minha ideia é que será no final que surgirá esse novo "caminho" ["la voie"] para a humanidade, depois que todas essas forças se unirem.
Não podemos trocar de caminho de forma abrupta. Todas as grandes mudanças da história começaram de maneira modesta. Veja a história das grandes religiões, por exemplo. Jesus, Buda e Maomé eram vozes solitárias no seu entorno. O começo do socialismo, da ciência... todo início é modesto.
Alguns críticos de seu livro dizem que o senhor mudou de lado: que o senhor abandonou o socialismo e adotou o discurso dos ecologistas.
A ecologia não é apenas a preocupação com as energias renováveis. Ela propõe também mudança de mentalidade, de vida, e é um programa muito importante.
Mas, ao mesmo tempo, ela não é suficiente como política, pois não dá conta de problemas de justiça, de liberdade, de igualdade, de direitos... esses problemas não são problemas "ecológicos". É preciso integrar a ecologia à política.
São os espíritos binários, sobre os quais já falei, que me veem ou como socialista ou como ecologista. Não é assim que as coisas funcionam.
O problema também é que a palavra "socialismo" tornou-se vazia. Os partidos socialistas hoje não têm mais pensamento algum. A esquerda na Europa está completamente fraturada. Verdadeiramente, ela existe apenas nos países da América Latina, e sob diversas formas.
Para fazer a esquerda renascer, é preciso reunir três fontes originárias do pensamento do século 19. A primeira é a libertária (anarquista), que versa sobre a liberdade dos indivíduos. A segunda é a do socialismo, onde a palavra quer dizer algo em prol do interesse da sociedade como um todo. E a do comunismo, onde a comunidade é o foco dos interesses (a fraternidade).
Essas três vias do pensamento se separaram ao longo da história, algumas se perveteram, outras perderam seu sentido.
Para fazer renascer a esquerda, então, é preciso voltar aos ideais da Revolução Francesa? Liberdade, igualdade e fraternidade?
Sim. Esses ideais são ainda muito modernos. Olhe para a "primavera árabe". O que querem esses jovens? Liberdade e dignidade. É preciso recuperar esse pensamento, essas ideias, esses ideais para que a esquerda renasça.
Em seu livro, o senhor fala um pouco sobre esse "vazio do pensamento" quando afirma que essa crise caótica que vivemos em escala planetária começa com uma "crise cognitiva".
Nós subestimamos a cegueira em que nos encontramos. E quando digo nós, me refiro aos indivíduos, mas também aos dirigentes políticos, os economistas, os especialistas.
Vivemos em um sistema de educação que separou os conhecimentos em disciplinas que não se comunicam umas com as outras.
Uma crise econômica está ligada a uma crise social, histórica, etc. Num cenário de globalização, tudo está ligado, conectado. Ora, é preciso pensar esses problemas de forma complexa, mas somos ensinados a ver (e a compreender) apenas pedaços da realidade.
Temos uma inteligência cega.
Para mudar isso, é preciso mudar completamente a forma como educamos nossas crianças.