terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Por que ler Peter Drucker?

Por que ler Peter Drucker?
Porque é possível aprender tanto com suas ideias quanto com a disciplina mental usada para formulá-las
Alan M Kantrow
Harvard Business Review Brasil, novembro 2009 <íntegra disponibilizado gratuitamente>


A extensa obra de Peter Drucker, que inclui mais de 30 ensaios para a HBR, é um marco no campo da administração. Há décadas influencia a prática e o ensino da gestão e é presença obrigatória na biblioteca de muita gente. Mas alguém lê tudo isso? Ou, melhor ainda, deveria ler? Ainda mais importante, o que alguém ganha com a leitura de Drucker?

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Neste artigo publicado originalmente em 1980, mas inédito na edição brasileira, o autor sustenta que a verdadeira contribuição de Drucker para a disciplina da administração está menos no valor de face de suas ideias e mais no rigor intelectual com que são formuladas. Seria possível aprender mais - e mais profundamente - observando Drucker pensar do que estudando o conteúdo de suas ideias. O autor mostra como o processo mental de Drucker (amplamente contextual, lógico e holístico) encena um drama permanente de perspectiva que, combinado à imparcialidade e a um fluxo natural de raciocínio, é tão eficaz em convencer o leitor. Kantrow classifica a obra de Drucker em quatro grupos - pensamento social e político, análise da administração e de empresas, conjectura sobre contornos do futuro e manuais de gestão - e explica como escolher o melhor livro para cada caso.

O artigo de Kantrow é acompanhado de depoimentos de cinco líderes sobre a influência que Drucker exerceu em cada um: A.G. Lafley, da Procter & Gamble; Frances Hesselbein, do Leader to Leader Institute; Oscar Motomura, da Amana-Key; Peter Paschek, da Delta Management Consultants; e Zhang Ruimin, da Haier. Colocamos esses depoimentos como comentários, que valem a pena ser lidos.
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À menção do nome Peter Drucker, muita orelha na floresta empresarial se põe em pé. Ao longo dos anos, pouca coisa de relevância para a atividade empresarial fugiu a seu extraordinário campo de interesses e poucas dessas matérias escaparam a uma refletida, e não raro clássica, exposição na extensa prateleira de artigos e livros de sua autoria.

Tamanha produtividade é, em si, um feito profissional de primeira grandeza. A isso se somam, contudo, as inúmeras aparições de Drucker em congressos para executivos, em conferências, em salas de aula; seu extenso trabalho como consultor; e sua facilidade para exprimir ideias complexas de modo simples e elegante. Não surpreende que a menção do nome Peter Drucker costume garantir atenção. As pessoas ouvem porque respeitam a autoridade da experiência - depurada, analisada, articulada - e porque desejam aprender com ela.

Há, é claro, quem não ouça Drucker com tanta atenção. Alguns, sobretudo no meio acadêmico, o consideram mais jornalista do que pensador, e mais generalista superficial do que jornalista. Para eles, sua pesquisa não tem nada de pesquisa e suas ideias sobre a administração são desestruturadas e (pior pecado de todos) assistemáticas. A seu ver, Drucker é um filósofo diletante desprovido de credenciais práticas como alguém que faz.

Num extremo, creem que não possui nem interesse nem competência sobre o sem-fim de detalhes das operações de uma empresa no dia a dia e, portanto, questionam a autoridade normalmente conferida a seu juízo.

No outro extremo, os seguidores mais atentos de Drucker, assim como os de muitos pensadores populares, exageram seus poderes. Fragmentos descontextualizados de seus escritos ou de suas conversas volta e meia são usados para sustentar argumentos que ele próprio não endossa. Na mesma veia, discípulos fervorosos demais reduzem a complexidade de seu pensamento a um punhado de ideias canônicas que, em sua simplicidade doutrinária, agridem o original.

Verdade seja dita, a obra de Drucker se presta a essas reações extremadas. Ao se apoiar em certas ocasiões sobre noções sugestivas - mas incompletas - como o “coeficiente de contribuição”, Drucker cria um terreno fértil para a oposição acadêmica.(1) Já ao buscar um estilo conciso e epigramático, acaba fazendo o jogo daqueles que se satisfazem facilmente com frases feitas e meias verdades. é retoricamente memorável afirmar, como faz Drucker, que “a maioria do treinamento em vendas é totalmente injustificada. Quando muito, transforma um imbecil em vendedor incompetente”. Mas a mesma declaração dá um tremendo estímulo ao displicente desprezo de um problema eternamente espinhoso.

O recurso a slogans, em qualquer circunstância, é uma faca de dois gumes. Usado com cuidado, permite a penetração rápida e incisiva da ideia; nas mãos erradas, torna-se uma arma eficaz do raciocínio simplista ou incoerente.

A influência das ideias

Em geral, no entanto, a obra de Drucker não atrai atenção nem pelo estoque de aforismos nem pelo domínio de cálculos técnicos. Os ouvidos param, isso sim, para apreender a sabedoria das ideias que movem Drucker. Sua acolhida pelo público é tão geral e sua influência tão duradoura que muitas dessas ideias são, hoje, parte indissolúvel do ideário comum da atividade empresarial. O resultado é que não é fácil - nem em retrospectiva - obter uma distância crítica delas.

É incrível a familiaridade atingida por sua visão da sociedade industrial moderna como constituída por organizações de larga escala. Quão óbvio parece, hoje, encarar a empresa como a instituição representativa dessa sociedade, e que natural passou a ser o exercício de aplicar, à empresa, os mesmos modos de análise válidos para qualquer instituição social ou política.

Houve um tempo no qual não se indagava regularmente de cada empresa qual sua fonte de legítima autoridade, seu princípio de organização ou seu padrão de liderança? Houve um tempo no qual a gerência sentia pouca necessidade de lidar com a preocupação de funcionários com seu status e sua função, de inserir o “trabalhador do conhecimento” em estruturas estabelecidas de tomada de decisão e comando, ou de garantir uma comunicação eficaz em (e entre) escalões da gestão?

A propósito, alguma vez a empresa não levou a sério a seleção e o desenvolvimento de executivos, o correto papel do conselho de administração ou as necessidades especiais da empresa em cada estágio de desenvolvimento? Não deu a devida atenção à lógica interna do trabalho propriamente dito ou às técnicas pelas quais o gestor pode se tornar a um só tempo mais eficiente e mais eficaz? Ignorou questões fundamentais como a natureza da atividade que exercia e dos clientes que servia?

Hoje, dificilmente é capa de jornal, pelo menos na comunidade empresarial, um executivo defendendo o lucro como indicador objetivo do desempenho econômico ou como prêmio essencial contra os riscos do futuro. Tampouco causa espanto ver o comando da empresa convocado a refletir sobre a estratégia de longo prazo, além de definir objetivos de curto prazo. Uma voz instando a empresa a planejar a inovação já não é uma voz clamando no deserto.

Que nada disso pareça novidade - que seja tudo bastante corriqueiro - é prova indiscutível da generalizada influência de Drucker, direta ou indireta, sobre o pensamento administrativo. Há muito essas ideias foram aceitas como uma espécie de sabedoria popular da profissão: viraram verdades in­questionáveis.

Contribuição de Drucker.

Verdade seja dita, poucas dessas ideias tiveram origem com Drucker. Um número ainda menor escapou de ser abordado em pelo menos uma dúzia de textos de gestão. Sempre há, contudo, valor em reencontrar uma ideia sensata apresentada com sensatez. Mas, se a substância de seus livros não é nem original nem única, se o que oferece é, quando muito, nem mais nem menos do que o conteúdo prontamente parafraseável de sua mente, por que se dar ao trabalho de lê-los? Por que, em suma, ler Peter Drucker e não um resumo simplificado de suas principais ideias?

A resposta é simples: a verdadeira contribuição de Drucker para a compreensão da gestão reside menos no valor de face de suas ideias do que na rigorosa atividade mental pela qual essas ideias são formuladas. é possível aprender mais - e mais profundamente - observando Drucker pensar do que estudando o conteúdo de seu pensamento.

Raciocínio integrado

A maioria dos críticos avalia a considerável contribuição da obra de Drucker para a disciplina da administração profissional. Mas o pensamento de Drucker tem muito mais valor pela forma do que pelo conteúdo. Primeiro, há a característica definitivamente integradora. Para entender tarefas essenciais da gestão, Drucker mostra pelo exemplo que é necessário contextualizá-las. é preciso entender o universo histórico de tradições e estruturas do qual surgiram e o universo cultural de normas e valores ao qual pertencem. é preciso conhecer as muitas formas assumidas pelo capitalismo ao longo do tempo e as vantagens particulares de cada uma delas. é preciso estar ciente de ideologias econômicas alternativas e das premissas em sua base. Em suma, é preciso saber reconhecer grandes mudanças em aspirações humanas bem como os limites fixos da adaptação humana.

É preciso, ainda, estar atento à velocidade, à direção e à lógica de mudanças tecnológicas e demográficas que tornarão o futuro muito distinto do presente. é preciso, ao mesmo tempo, averiguar bem o que no presente irá durar. Também é importante complementar a compreensão da gestão com insights de outros campos do conhecimento, comparando-a regularmente com uma síntese da experiência de outras organizações de larga escala e de culturas distintas.

Quando aplicado a um problema, por mais espinhoso que seja, esse raciocínio integrativo permite a Drucker identificar as principais premissas em pauta, a estabelecer suas relações mútuas e a avaliá-las. Peguemos, por exemplo, sua longa discussão sobre a maldição da empresa de grande porte em Concept of the Corporation.(2) Aqui, Drucker evita os excessos desnecessários daqueles que ou defendem ou atacam o porte descomunal de certas empresas. Como? Buscando a raiz de sua premissa operacional e mostrando o sério equívoco nela embutido.

Conscientemente ou não, a maioria dos detratores do gigantismo, descobre Drucker, está na verdade brigando contra os moinhos de vento do monopólio; seus defensores, protegendo-os. Agora, monopólio e gigantismo obviamente não são a mesma coisa e não devem ser confundidos. Mas Drucker consegue esmiuçar ainda mais o ponto em questão e, com isso, desafiar sua base histórica, não só lógica. “Essa teoria do monopólio”, escreve, “ainda é muito aceita como verdade divina e repousa na premissa - correta no século 18 - de que a oferta será sempre limitada, ao passo que a demanda será sempre ilimitada.” (3)

Essa hipótese nem sempre se sustenta. Pode valer para certos períodos históricos, mas não necessariamente para todos. Por conhecer o significado tradicional de monopólio e as diferenças estruturais entre condições econômicas passadas e presentes, Drucker consegue focalizar de novo uma discussão errante.

Outros exemplos se sugerem por si só. Em The End of Economic Man, Drucker compreende o sentido por trás do apelo aparentemente irracional do fascismo ao reconhecer o contexto histórico de suas ideias.(4) Segundo Drucker, a Grande Guerra e a Grande Depressão destruíram a já abalada fé da Europa num sistema econômico autônomo, regido por leis racionais e fonte tanto de liberdade como de igualdade. Quando a visão de mundo racional herdada da economia clássica ruiu, o fascismo assumiu o controle da mente europeia precisamente por ser “irracional” - ou seja, por sugerir uma base não econômica para o status e a posição do indivíduo. Drucker chega ao âmago desse fenômeno do século 20 ao entender a súbita irrelevância de sistemas de pensamento anteriores.

Uma compreensão similar caracteriza seus muitos obiter dicta sobre o marxismo, bem como seu famoso ensaio sobre John Maynard Keynes. Drucker escreve:

“A obra de Keynes foi fundada na constatação de que premissas fundamentais da economia do laissez-faire do século 19 já não se sustentam em uma sociedade industrial e uma economia do crédito. Mas visava à restauração e à preservação das crenças básicas, das instituições básicas da política do laissez-faire do século 19; acima de tudo, visava à preservação da autonomia e do automatismo do mercado. Já não havia como juntar os dois em um sistema racional; as políticas de Keynes são feitiços, fórmulas mágicas e encantamentos para fazer com que o sabidamente irracional se comporte racionalmente”.(5)

Muito disso vale também para o pensamento de Marx, que trata como um fato universal condições limitadas a uma breve fase do desenvolvimento industrial.

Implicações tecnológicas.

O raciocínio integrativo de Drucker também lança luz sobre os deveres especiais impostos pela tecnologia à empresa moderna. Graças a sua ampla familiaridade com a história do desenvolvimento industrial, Drucker pode argumentar em Tecnologia, Gerência e Sociedade que houve uma gigantesca “mudança geral na natureza do trabalho tecnológico durante [nosso] século” - mudança em estrutura, custos, métodos e bases conceituais.(6) Drucker está perfeitamente ciente, por exemplo, de que as qualidades profissionais e institucionais do trabalho tecnológico são fundamentalmente novas, bem como as despesas de capital exigidas, que crescem em proporção geométrica. Entende as implicações de uma transição mais demorada da pesquisa para a aplicação prática e enxerga a necessidade de uma relação basicamente nova entre ciência e tecnologia. Reconhece, também, o perigo da abrupta compressão de ciclos de vida habituais de produtos.

Agora, mais do que nunca, a tecnologia exige da empresa adaptação ferrenha a circunstâncias objetivas e compromisso cada vez mais vigilante com propósitos sociais supremos. Para ter sucesso - até para sobreviver - sob tais condições modernas, a empresa precisa entender e cumprir essas duas obrigações. é preciso a síntese druckeriana da história tecnológica e industrial para deixar clara essa tão equilibrada conclusão.

Tomada de decisões no Japão.

O exemplo mais impressionante desse raciocínio integrativo talvez seja a minuciosa análise que Drucker fez do processo decisório em empresas japonesas.(7) O uso de evidências de uma cultura tão distinta desperta interesse não só pelo fato em si, mas também por colocar práticas americanas em maior relevo. No Japão, descobre Drucker, o processo decisório difere do americano em três aspectos essenciais: (1) decisões tendem a ser grandes - ou seja, têm a ver com questões de vasta importância; (2) para tomá-las, gasta-se uma quantidade incomum de tempo para a diligente obtenção de consenso entre todos os interessados; e (3), uma vez tomadas, rapidamente se convertem num curso de ação - curso em geral radicalmente em choque com a política anterior.

Por sua longa familiaridade com o jeito japonês de trabalhar, Drucker sabe que essa sequência aparentemente inexplicável de morosidade e velocidade máxima faz total sentido, ainda que não soubéssemos. Diferentemente do executivo americano, cujas decisões normalmente focam os méritos de uma única alternativa e cujas preocupações são mais táticas do que estratégicas, os japoneses se empenham, primeiro, em definir a exata natureza da questão em pauta. Só então analisam metodicamente todo curso de ação disponível. Embora consuma bastante tempo, esse processo garante que a decisão por fim tomada tenha sido “previamente vendida”. Estabelecido esse consenso, todo gestor envolvido sabe qual é a decisão, o que significa e o que é necessário para que funcione.

O executivo americano, em comparação, normalmente não se disciplina para considerar todas as alternativas possíveis. Pior ainda, em geral não se obriga a refletir sobre a natureza da questão a sua frente. O resultado é que suas decisões muitas vezes tratam de sintomas e quase sempre têm de ser “vendidas” depois de tomadas. Embora as concessões feitas sejam mais ou menos equivalentes às implícitas em qualquer consenso japonês, são estruturalmente deficientes de um jeito que as japonesas não são. Por sucederem o fato, as concessões americanas e os inevitáveis trade-offs que envolvem podem virar de pernas para o ar a lógica sistemática da decisão original; por antecederem o fato, concessões feitas pelos japoneses estão, por definição, incluídas - e computadas - na decisão em si.

Contexto e lógica

O processo decisório no Japão e nos Estados Unidos, o impacto da moderna tecnologia, as ideias de Keynes e Marx, o apelo do fascismo, a maldição do gigantismo - a mente de Drucker aborda cada um desses tópicos de modo bastante parecido. Para Drucker, uma ideia tem tanto um contexto histórico (ou cultural) externo como uma lógica de argumentação interna. O primeiro aspecto dá à ideia suas premissas definidoras e seu vocabulário conceitual; o segundo, sua cogência sistemática. O primeiro a situa no tempo e no espaço; o segundo faz com que seja mais geralmente aplicável. O primeiro sublinha sua relatividade; o segundo destaca sua universalidade. Drucker não nega a tensão entre contexto e lógica. Ao examinar ambos de perto, é reiteradamente capaz de definir os termos relevantes da discussão, reduzi-los a princípios primeiros, revelar premissas ou inferências incorretas e identificar contradições ocultas.

Drucker aborda a questão de salários e política salarial, por exemplo, de modo a expor as premissas iniciais de empregado e empregador, bastante distintas. Ataca a arbitrariedade do período contábil anual, apontando para a grande distância entre uma convenção abstrata e a realidade que esta pretende representar. Mostra que os critérios típicos de promoção na gerência são estruturalmente contraditórios - ou seja, em conflito com objetivos econômicos inarredáveis. Em cada caso, a cabal recusa de Drucker a aceitar convenções por seu valor de face permite que enxergue suas premissas formativas.

O holismo de Drucker.

Uma visão crítica de tal amplitude é, por sua vez, a devida expressão de um processo de raciocínio instintivamente holístico. Como vários observadores de Drucker já disseram, sua mente não gravita nem para o fato isolado nem para a explicação causal mecânica. Drucker responde, de verdade, a padrões e configurações caleidoscópicos entre fatos e à explicação processual de seu significado. Dados soltos e aleatórios viram fatos, e fatos isolados assumem importância somente em virtude de sua participação em - e relação com - um todo de maior dimensão.

O holismo de Drucker é mais visível em Uma Era de Descontinuidade, obra na qual discute as “descontinuidades” não evolucionárias no universo social moderno.(8) A explosão de novas tecnologias, o surgimento de uma economia global realmente integrada, o papel central do conhecimento como recurso econômico e a aparição de inúmeras instituições não governamentais - tudo isso sugere uma mudança radical no mundo como hoje o vemos. Em sua opinião, são como as “derivas que formam novos continentes”. Representam alterações imensas, mas basicamente ocultas, nas bases de nossas vidas. Indícios de sua existência estão por toda parte, mas é preciso a mente holística de Drucker para reuni-los, reconhecer sua forma e determinar seu significado.

O mesmo vale para a análise de Drucker da gestão propriamente dita. Por exemplo, sua insistência no marketing como tarefa essencial e inarredável da administração é testemunho de uma visão da atividade empresarial como um processo necessariamente voltado à criação e à satisfação de clientes. Drucker igualmente infere um punhado de padrões ideais da massa de variações individuais de princípios de produção e organização. Aliás, ao discorrer sobre a profissão da administração, Drucker invariavelmente a concebe como uma disciplina que ensina seus praticantes a identificar constelações de significado num fluxo de informações e circunstâncias de resto caótico.

Amplamente contextual, lógico, holístico, o processo mental de Drucker - sua verdadeira contribuição para a disciplina da administração - encena uma espécie de drama permanente de perspectiva. Faz muito mais do que simplesmente brindar informações úteis. é uma verdadeira aula sobre como pensar.

A imparcialidade de Drucker.

A obra de Drucker também é instrutiva em outro aspecto. Embora normalmente incisiva e prescritiva, raramente abandona o tom de calma racionalidade ou se afasta do compromisso primário de análise objetiva. é bem o contrário: é de uma imparcialidade implacável. Há, é claro, pecados no mundo - políticos, sociais, administrativos - que merecem sua crítica e seu desprezo. Mas Drucker ouve todos com neutralidade antes de proferir a sentença.

Para alguns, essa inabalável reflexão é desconcertante. “O.k., o.k., vamos ao ponto”, murmuram, impacientes. Mas não “ir ao ponto”, pelo menos no sentido pretendido, é um dos feitos de maior valor de Drucker. A mente impaciente transfere a autoridade na argumentação à comichão da irritação e a retira dos domínios da razão. Segundo observadores bem informados, muito do contínuo sucesso do premiê canadense Trudeau se devia a seu incansável traseiro, que permitia que o ministro suportasse mais horas de reunião e superasse na argumentação seus oponentes menos pacientes. De forma menos visual, mas tão eficaz quanto, a forte devoção de Drucker ao ritmo cadenciado da razão dá a suas conclusões uma insistente persuasividade.

O leitor de Drucker responde não só à imparcialidade, mas também à graça e ao refinamento óbvios de seu discurso. Sua prosa é incrivelmente culta; seu escopo de referência, enorme; seu estilo natural de formular observações importantes é de uma simplicidade enganadora e reconfortante. A pessoa é inclinada a crer no que Drucker diz por confiar na voz que está dizendo - voz que nem ameaça nem desnorteia, mas traz a promessa de que até o mais complexo dos tópicos se curvará à experiência, ao raciocínio ordenado e ao simples bom senso.

Consideremos, por um instante, um trecho de Administração: Tarefas, Responsabilidades, Práticas. O contexto imediato é uma discussão, talvez um pouco datada, de situações nas quais um “profissional do conhecimento” possa legitimamente receber um salário maior do que gerentes acima dele:

“Aqui há, inclusive, um precedente instrutivo (...). Em 1920, quando Pierre S. Du Pont e Alfred P. Sloan Jr. tentaram pela primeira vez colocar ordem no caos da General Motors Company, o que fizeram foi equiparar os salários dos chefes de divisões operacionais ao do presidente, Pierre Du Pont. Por solicitação própria, Sloan passou a ganhar consideravelmente menos como vice-presidente operacional (a quem os chefes de divisão respondiam). O gerente de uma unidade composta de profissionais de carreira ou especialistas naturalmente irá ganhar mais do que a maioria dos homens na unidade, mas não deveria ser incomum, e muito menos indesejável, que um ou dois ‘astros’ do grupo ganhem mais do que o gerente. Isso pode valer também para vendedores; deveria ser normal um astro das vendas ganhar mais do que o gerente regional de vendas. O mesmo deveria ocorrer no laboratório de pesquisa e em qualquer outra área na qual o desempenho dependa da habilidade, do esforço e do conhecimento individuais”.(9)

Até quando isso representava um tema controverso e um ponto de vista ainda mais controverso, Drucker apresentava a coisa de modo a soar razoável e cogente. E como consegue? Primeiro, torna um terreno estranho conhecido ao citar precedentes relevantes da história da General Motors. Segundo, relata a ação central (o que Sloan fez) de tal modo (“por solicitação própria”) que um tema abstrato de estrutura é convertido numa questão mais tangível de juízo gerencial. Terceiro, generaliza as premissas na base da decisão de Sloan, traduzindo-as de volta para termos estruturais. Quarto, sugere seu leque potencial de aplicação. Por último, extrai disso um princípio essencial, definidor.

O processo de discussão de Drucker envolve, portanto, estabelecer o precedente relevante, torná-lo inteligível em termos humanos, articular suas implicações organizacionais, definir seus limites e deixar claro do que realmente se trata. Sua mente joga com a questão em mãos, encarando-a de várias perspectivas, indicando agora este aspecto importante, agora aquele outro. Drucker envolve o leitor com um tour de force de reflexão, mas o convence, quando é o caso, com um tom de autoridade responsável e um fluxo natural de raciocínio.

Potência retórica.

É essa a mecânica de um típico exemplar da prosa de Drucker. O leitor não é arrastado contra a própria vontade para uma conclusão indesejada. Longe disso. Drucker o conduz gentilmente pelo braço e caminha com ele até sua conclusão parecer o destino mais lógico. Ao longo do caminho, seu ritmo em geral é calmo, ponderado, deliberado. Mas nem sempre. Aqui e ali Drucker parte para uma investida fanática por alguma San Juan Hill retórica. Vejamos Drucker a plena carga sobre a questão do lucro:

“Na realidade, o conceito [de equiparar o lucro com o motivo do lucro, algo muito comum] é pior do que irrelevante: é nocivo. é um dos principais motivos para a incompreensão da natureza do lucro em nossa sociedade e para a arraigada hostilidade ao lucro, que figura entre os males mais perigosos de uma sociedade industrial. é, em grande medida, responsável pelos piores erros na gestão pública - nesse país e na Europa Ocidental -, que se devem basicamente à incapacidade de entender a natureza, a função e o propósito da atividade empresarial. E é, em grande parte, responsável pela tese corrente de que há uma contradição inerente entre o lucro e a capacidade de uma empresa de dar uma contribuição social. Na verdade, uma empresa só pode dar uma contribuição social se seu lucro for alto. Sinceramente, uma empresa quebrada dificilmente será um bom lugar para trabalhar ou uma boa vizinha e parte desejável da comunidade - não importando o que certos sociólogos de hoje pareçam crer em contrário”.(10)

Aqui, não há nada a discutir: a prosa é exaltada, imoderada. O contexto imediato é, sim, uma discussão ponderada da diferença lógica entre um termo como “motivo do lucro”, que alude a realidades psicológicas, e um termo como “rentabilidade”, que se refere a padrões abstratos de avaliação empresarial. E, claro, seu contexto mais geral são trechos que, espalhados pela obra de Drucker, montam uma forte defesa do lucro como recompensa essencial contra os riscos do futuro.

Ainda assim, é um discurso exaltado. Seu ritmo incremental é o do púlpito; sua lógica reduz longas sequências de causa e efeito a mecanismos simples de incitação; seu tom desdenhoso não deixa espaço para os céticos. Pode ser um rompimento radical com a norma retórica de Drucker, mas não é nem acidental nem ineficaz. é fanatismo com um propósito.

Como bem sabe Drucker, o discurso instrui e anima não só ao convencer a razão, mas também ao dobrar ou romper uma vontade recalcitrante. Quando há muito em jogo e a teimosia intelectual de parte da plateia é grande o bastante, Drucker conduz o leitor na marra, derrubando defesas habituais por pura força retórica. Não é sempre que se vale disso, mas é bom o bastante como tático verbal para se sair bem quando tenta.

Questões morais

Mesmo diante de trechos como este, há quem ainda critique Drucker por aquilo que, a seu ver, é uma evidente falta de ardor em suas ideias, um certo distanciamento do material. é um grande equívoco. Há uma imensa diferença entre inteligência isenta e inteligência destituída de paixão. A objetividade calculada de Drucker reflete o autêntico compromisso com um raciocínio isento, embora longe de desapaixonado. Aliás, muito de seu pensamento reflete uma terrível urgência de propósito moral. A preocupação de Drucker com a profissão da administração é tamanha devido a seu profundo medo daquilo que poderia ocorrer caso as principais instituições da sociedade ocidental não honrassem suas responsabilidades básicas.

Mesmo sem prestar completa atenção, qualquer leitor de livros anteriores de Drucker ou de sua recente autobiografia não deixará de notar que as lições do fascismo na Itália e do nacional-socialismo na Alemanha não foram ignoradas por ele. Esse traumático momento da história está sempre presente em sua mente de um jeito simplesmente impossível para teóricos da gestão mais jovens, americanos de nascimento (Drucker nasceu em Viena, na áustria, em 1909). Não há como partilharem a perturbadora urgência de seu senso do preço pago pela sociedade do século 20 pela falência institucional.

No mundo de hoje, acredita Drucker, as liberdades humanas verdadeiramente prezadas dependem em grande medida, para sua proteção, de organizações em grande escala. Quando bem-sucedidas, essas organizações garantem grande parte da satisfação humana hoje disponível para o homem ocidental. São o principal palco para a conquista da liberdade individual e para que se assumam responsabilidades por meio do autocontrole. Se as instituições da atividade empresarial não puderem satisfazer as necessidades cumulativas de desempenho econômico, da sociedade e do indivíduo, não há nada que separe qualquer um de nós das forças do caos e do terror. Não admira, portanto, que Drucker dê tanta ênfase ao caráter do administrador e à imensa responsabilidade que este carrega.

O que ler

Dada a disposição a ler Drucker, mas um tempo limitado, em que livros se concentrar? É uma escolha dificílima, pois Drucker não só escreveu muitos livros, mas escreveu livros muitos distintos uns dos outros. Há, porém, como dividi-los, grosso modo, em quatro categorias: pensamento social e político, análises da profissão da administração e de instituições empresariais, conjecturas embasadas sobre contornos do futuro já visíveis no presente e manuais de gestão para certas tarefas ligadas à atividade empresarial. Certos títulos entram, naturalmente, em mais de uma categoria; um punhado não se encaixa bem em nenhuma delas.

A primeira entre as obras de teoria social e política é The End of Economic Man, uma abordagem incrivelmente neutra sobre o fascismo na Europa do século 20. Outras duas publicações completam o ciclo de ideias ali iniciado: The Future of Industrial Man, (11) que aborda o problema central da autoridade legítima em instituições modernas, e A Nova Sociedade, (12) que traça uma visão idealizada da cidadania industrial. Men, Ideas and Politics, uma das várias coletâneas de ensaios de Drucker, traz uma série de notas ornamentais, incluindo reflexões originais sobre Søren Kierkegaard, John C. Calhoun e Henry Ford.

Os livros de gestão propriamente dita também compõem um ciclo de ideias. Concept of the Corporation é o estudo pioneiro da General Motors. Prática da Administração de Empresas (13) e Administração: Tarefas, Responsabilidades, Práticas são, talvez, as duas contribuições mais famosas de Drucker para o estudo da gestão como disciplina profissional.

No terceiro grupo estão duas coleções de ensaios, America’s Next Twenty Years (14) e Tecnologia, Gerência e Sociedade, e ainda Landmarks of Tomorrow.(15) Todos eles trazem, basicamente, aquilo que o título sugere. Uma Era de Descontinuidade identifica e avalia mudanças radicais nas bases do mundo moderno. Já A Revolução Invisível - muito criticado por confundir propriedade com controle - considera uma espécie de mudança distinta, mas não menos radical: o desenvolvimento do que Drucker chamou de “socialismo de fundo de pensão” nos EUA.(16)

Por último, há os manuais de gestão: Administração Lucrativa, com sua ênfase em táticas para melhorar o desempenho econômico, e O Gerente Eficaz,(17) com suas sugestões para tornar o executivo um gestor mais eficaz tanto de si próprio quanto dos outros.

O livro mais recente de Drucker, o autobiográfico Reminiscências de Viena ao Novo Mundo, não pertence a nenhuma dessas categorias.18 Não importa. O elenco de personagens entre os quais Drucker circula, sobretudo nos capítulos europeus, é de uma riqueza excepcional. Já a breve visão que descortina de um universo social e político desaparecido é, em si, uma lição. Na maior parte das vezes, essa obra é melhor do que um romance, mais vívida do que um ensaio e refletida como ambos em sua melhor encarnação. Uma Era de Descontinuidade é do mesmo nível. Também é uma leitura prazerosa, embora de outra espécie. é cada vez mais importante para o gestor pensar produtivamente sobre os contornos do futuro - Descontinuidade sugere um modelo provocativo para tal.

Se houver tempo suficiente e estiver em clima de reflexão, o leitor deve avançar lentamente por The Future of Industrial Man. é a visão de Drucker dos problemas centrais que a sociedade industrial enfrenta - liberdade e legitimidade - e que não aparecem diariamente nos telejornais.

Mais importante de todos é o Prática da Administração de Empresas, o melhor livro de Drucker sobre a profissão da administração. Bem mais incisivo que o compêndio mais extenso que é Administração, perfeitamente equilibrado entre preceito e exemplo, é um livro eminentemente prático, mas de genuíno escopo intelectual. Se a obra de Drucker tem algo de valor imediato para o leitor, o mais provável é que se encontre aqui.

Lembremos, contudo, que o maior valor da leitura de Drucker está na sustentada exposição à disciplinada atividade de sua mente - e não apenas na substância parafraseável de suas ideias. é claro que há ideias em abundância, e sem dúvida dignas de atenção. Mas, como bem sabia Samuel Johnson (o grande humanista do século 18), na leitura de um livro o que realmente importa não é colher cada flor individualmente, mas “agarrar com força o tronco, para sacudir todos os galhos”. Na obra de Drucker, agarre com força a disciplina de sua mente.

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Alan M. Kantrow é professor de administração e diretor do Centro de Pesquisa em Infraestrutura da Faculdade de Administração Skolkovo, na Rússia.
(publicado originalmente em Janeiro-Fevereiro 1980)


1. Administração Lucrativa (Zahar Editores, 1968).
2. Concept of the Corporation (New York: John Day, 1946).
3. Ibid.
4. The End of Economic Man (New York: John Day, 1939).
5. “Keynes: Economics as a Magical System”, em Men, Ideas and Politics (New York: Harper & Row, 1971).
6. Tecnologia, Gerência e Sociedade (Vozes, 1972).
7. Para a análise de Drucker da gestão japonesa, ver “Japan Tries for a Second Miracle” e “What We Can Learn from Japanese Management”, in Men, Ideas and Politics, e Administração: Tarefas, Responsabilidades, Práticas (Abril/Pioneira, 1975).
8. Uma Era de Descontinuidade (Zahar, 1970).
9. Administração: Tarefas, Responsabilidades, Práticas.
10. Ibid.
11. The Future of Industrial Man (New York: John Day, 1942).
12. A Nova Sociedade (Ipanema, 1957).
13. Prática da Administração de Empresas (Fundo de Cultura, 1964).
14. America’s Next Twenty Years (New York: Harper & Row, 1957).
15. Landmarks of Tomorrow (New York: Harper & Row, 1959).
16. A Revolução Invisível (Thomson Pioneira, 1977).
17. O Gerente Eficaz (LTC, 1967).
18. Reminiscências de Viena ao Novo Mundo (Thomson Pioneira, 1982).

6 comentários:

Omar Rocha disse...

Considero Peter Drucker um pensador sério - em uma área pontuada por aproveitadores - da gestão e do planejamento estratégico. As relações que traça entre o setor privado e o setor voluntário ("not for profit") são de via dupla, ou sejam, servem para as empresas e também para as ONGs e organizações da sociedade civil.

Nos próximos comentários, postarei depoimentos sobre "O que aprendi com Peter Drucker" escritos por diversos autores. Vale a pena ler!

Apesar do artigo ter sido publicado em 1980, ou seja, há quase 30 anos, as idéias aqui expressas continuam válidas e provocantes.

Anônimo disse...

O QUE APRENDI COM PETER DRUCKER

O propósito de uma empresa é criar um cliente
A.G. Lafley

Ainda na faculdade, vi os livros de Peter Drucker na biblioteca de meu pai em casa. Havia, entre outros, O Gerente Eficaz; Administração: Tarefas, Responsabilidades, Práticas; e Prática da Administração de Empresas. Corri os olhos por eles, mas na época estava mais interessado em história, biografias, literatura e economia. Pensava em ser professor.

Mais tarde, já um jovem oficial da Marinha americana, busquei a obra de Drucker para um intensivão sobre a gestão de empresas. Minha estreia no mundo dos negócios foi tocando a loja da Marinha na base naval de Atsugi, no Japão. Drucker foi meu coach e mestre. A loja foi meu treinamento na prática.

Em 2000, quando indicado para a presidência da Procter & Gamble, voltei a procurar Drucker - tanto sua obra quanto ele, em pessoa. A empresa vivia um momento difícil e eu precisava de bons conselhos. Duas vezes por ano rumava para Claremont College, na Califórnia, para falar com ele sobre a empresa e o papel do presidente. Aprendi muito com Drucker ao longo dos anos, mas o mais importante foi, de longe, o mais simples: “O propósito de uma empresa é criar um cliente” e “Uma empresa (...) é definida pela necessidade que o cliente satisfaz ao comprar um produto ou um serviço. Satisfazer o cliente é a missão e o propósito de toda empresa”.

Na P&G, toda decisão que tomamos é com as palavras de Drucker em mente. Declaramos que o consumidor - e não o presidente - é quem manda. Nosso propósito é chegar a mais consumidores e melhorar mais a vida de cada consumidor. Ao encarar os negócios da perspectiva do consumidor, é possível enxergar a necessidade de vencer em dois momentos definidores: o primeiro é quando alguém compra um produto da P&G no comércio. O segundo é quando essa pessoa, ou alguém da família, usa o produto em casa.

Sabíamos que o modelo de negócios da P&G parecia simples. Mas era uma simplicidade enganadora, típica da sabedoria que marcou a obra de Drucker. Ao colocar o cliente em primeiro lugar, o número de consumidores servidos pela P&G pulou de 2 bilhões para 3,8 bilhões; sua receita dobrou; e seu lucro nos primeiros nove anos do século 21 triplicou.

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A.G. Lafley é presidente do conselho de administração da Procter & Gamble. Foi seu presidente executivo de 2000 a 2009.

Anônimo disse...

O setor social redefinido
Frances Hesselbein

Em meados de 1989, muita gente de organizações sem fins lucrativos, como eu, viveu um momento definidor. Foi quando a Harvard Business Review publicou “O que as empresas podem aprender com as instituições sem fins lucrativos”, artigo seminal de Peter Drucker. Tivemos uma reação coletiva de espanto ao ver o título. Será que a intenção dele era mesmo dizer que o terceiro setor tinha princípios úteis de gestão a partilhar com nomes como GE, IBM e General Motors? Depois de anos sendo considerado café-com-leite? Drucker certa vez dissera que a gestão de organizações sem fins lucrativos, em sua melhor encarnação, era melhor do que a das melhores empresas - e há muito vinha difundindo a mensagem, por escrito e oralmente. Com aquele artigo, no entanto, ajudara a redefinir o setor social e a garantir seu reconhecimento como parceiro de igual valor de empresas e governos.

Para mim, foi também uma espécie de revelação pessoal. Em janeiro, iria deixar a Girl Scouts dos Estados Unidos depois de 13 anos maravilhosos no comando do grupo de escoteiras. Minha equipe e eu festejamos a publicação do artigo de Drucker e queríamos propagar a mensagem - e não só porque citava nossa organização. As incríveis verdades naquele artigo nos ajudaram (e nossos colegas em outras entidades sem fins lucrativos) a entender melhor o que fazíamos e o mundo que tentávamos mudar. Como diria Drucker mais tarde, a expressão “sem fins lucrativos” definia o que não éramos. Precisávamos, segundo ele, nos definir de acordo com o que éramos: implacavelmente focados em, por exemplo, reforma da saúde, ensino de qualidade e prosperidade econômica para todos. éramos, afinal, o setor de “maior sucesso na satisfação de necessidades sociais”.

Pouco depois de deixar as escoteiras, fui a Claremont, na Califórnia, encontrar Drucker. Comigo foram Bob Buford, empreendedor social que à época presidia a Buford Television, e Richard Schubert, ex-presidente da Cruz Vermelha Americana, que em breve assumiria a presidência da fundação Points of Light. Tínhamos sido profundamente influenciados pelos ensinamentos de Drucker e queríamos achar maneiras de difundir sua palavra e filosofia. Durante um café da manhã, nos revezamos na descrição de nossa ideia, que era criar uma fundação: a Peter F. Drucker Foundation for Nonprofit Management. Drucker ouvia sem deixar entrever se aprovava ou não a ideia (“O que esses três estão querendo?”, devia estar pensando). Quando terminamos, fez-se um silêncio. Drucker então disse: “Não quero que leve meu nome. Ainda não morri e não pretendo virar um ícone”. Creio que foi a única batalha que ele perdeu. Pouco depois, virei presidente daquela que era, provavelmente, a menor fundação do mundo, sem verba nem equipe - só uma visão inspiradora e Peter Drucker a bordo.

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Frances Hesselbein é presidente do conselho do Leader to Leader Institute (antiga Peter F. Drucker Foundation for Nonprofit Management).

Anônimo disse...

A essência de uma empresa
Oscar Motomura

Quando conheci Peter Drucker, 15 anos atrás, fui apresentado a ideias que influenciaram profundamente meu trabalho desde então. A principal delas é que, além de dar lucro ou de gerar riqueza para stakeholders, a essência de uma empresa é fazer diferença, ser verdadeiramente útil e criar algo de que o mundo realmente precise.

Esse propósito maior, observou Drucker, tem de ser algo elevado, como a ambição da General Electric de ser, nas palavras dele, “a líder em fazer a ciência trabalhar para a humanidade”. Não pode ser algo superficial, como muitas das declarações de missão de empresas hoje em dia.

Por que esse credo é tão importante? Porque sem uma razão de ser inspiradora, a empresa não terá como explorar o pleno potencial de seus funcionários. “A quantidade de gente realmente motivada por dinheiro é muito pequena”, disse Drucker. “A maioria precisa sentir que está aqui por uma razão. Se for incapaz de estabelecer um elo com essa necessidade de deixar algo para trás, algo que faça do mundo um lugar melhor ou pelo menos diferente, a organização não terá sucesso a longo prazo.”

De onde vem esse forte senso de propósito da empresa? Segundo Drucker, é possível traçá-lo, em todos os casos, a um indivíduo, não necessariamente o fundador. A visão da GE (“Levar tecnologias inovadoras ao mundo”) não foi obra de Thomas Edison; sua origem está em Charles Proteus Steinmetz, o engenheiro eletricista germano-americano que convenceu a GE a montar seu primeiro laboratório. Enquanto um propósito desses perdurar, disse Drucker, a empresa vai sobreviver e prosperar.

Outra coisa que Drucker me disse é que um propósito, para ser eficaz, deve articular não só aquilo que a empresa fará, mas também o que não fará. A seu ver, o credo da Johnson & Johnson - uma só página - era exemplar, pois é um dos poucos que abordam as duas coisas.

Como consultor de empresas, ainda uso as ideias de Drucker no trabalho com executivos. Normalmente, peço que reflitam sobre o propósito da organização. O que justifica sua existência? O que fará e o que não fará? Que benefícios importantes, além do lucro ou do valor ao acionista, a organização tenta produzir? De que modo contribui para algo que o mundo realmente precisa? De que modo cada gesto mínimo da empresa ajuda a criar um legado positivo e construtivo?

Ao buscar respostas para isso tudo, o executivo naturalmente começa a pensar sobre seu papel como cidadão e ser humano. Em geral, isso o ajuda não só a adquirir uma consciência mais profunda do propósito de seu trabalho e de sua empresa, mas também a reinventar o próprio sentido de sua jornada na liderança.

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Oscar Motomura é fundador e presidente do Grupo Amana-Key, consultoria especializada em treinamento para executivos com sede em São Paulo.

Anônimo disse...

A responsabilidade do consultor
Peter Paschek

Conhecia Peter Drucker há 30 anos. Fora os conselhos que me deu sobre minha carreira, sua visão da responsabilidade da empresa para com a sociedade e a de consultores para com clientes teve um profundo impacto em minha vida.

Em 2001, Drucker escreveu: “No meio século transcorrido desde a 2ª Guerra Mundial, a corporação empresarial se provou maravilhosamente como organização econômica (...) Na Próxima Sociedade, o maior desafio (...) talvez seja sua legitimidade social: seus valores, sua missão, sua visão”. O pé-atrás em relação a empresas devido à crise recente provou o quão certo estava.

Responsabilidade social, para muitos executivos, é só da boca para fora. é mais questão de imagem (algo a ser delegado ao departamento de RP) do que de substância (central para a estratégia). Sua maior preocupação ainda é maximizar o valor ao acionista a curto prazo - foco estreito, que Drucker condenava. E seguem pagando a si mesmos salários e bônus exorbitantes, algo “moral e socialmente imperdoável”, nas palavras de Drucker.

No conjunto, profissionais da consultoria - cujo papel é “central para o desenvolvimento da teoria, da disciplina e da profissão da gestão - não são melhores. Focam quase que exclusivamente o lado econômico da gestão. Não raro, o que receitam é corte de custos e demissões.

Uma raiz do problema é a educação. Para Drucker, a administração era parte das ciências humanas. O administrador devia, portanto, ter conhecimento de humanidades e ciências sociais. Concordo inteiramente. Inovadores na gestão produziram uma fartura de conceitos e ferramentas para ajudar a empresa a melhorar seu desempenho econômico. Onde estão os conceitos e as ferramentas para ajudá-la a melhorar seu desempenho social?

Como disseminador do conhecimento no meio empresarial, o consultor pode e deve ajudar a organização a ser uma melhor cidadã empresarial e a reconquistar a confiança pública. Segundo Drucker, deve encarar a si mesmo como diagnosticador, terapeuta e estudioso, não como técnico. E deve entender as competências, a cultura e a história únicas da empresa. A melhor maneira de ajudar o cliente a melhorar seu desempenho é explorar seus pontos fortes, incluindo os melhores aspectos de sua cultura. Drucker sabia que é possível descartar hábitos ruins, mas não transformar rapidamente uma cultura enraizada.

Drucker também achava que o consultor deve respeitar todos os clientes e lembrar que vive do conhecimento deles. Faz total sentido: para poder disseminar melhores práticas, o consultor precisa ser não só um bom professor, mas também um bom aluno. Não significa que deva evitar dizer a verdade aos clientes. é bem o contrário: o consultor às vezes precisa ser um “insultor”, disse.

A empresa está entrando numa nova era - era na qual terá de se reinventar não só para poder competir, mas também para provar sua legitimidade social. Por ser um agente de mudanças, o consultor de empresas terá um papel crítico a desempenhar. As orientações de Peter Drucker podem ajudá-lo a exercê-lo bem.

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Peter Paschek é sócio gerente da Delta Management Consultants. é radicado em Berlim.

Anônimo disse...

A distância foi eliminada
Zhang Ruimin

Quando fundamos a Haier, na década de 1980, a oferta de quase todo produto na China era escassa e o segredo para lucrar muito parecia ser maximizar as vendas. A vasta maioria das empresas acreditava nisso e lutava para levar todo produto que pudesse ao mercado. Mas, na Haier, vimos que um foco exclusivo em gerar lucros imensos hoje não garantiria a sobrevivência amanhã. Decidimos, então, fechar o foco na qualidade. No começo isso causou a impressão de que estávamos perdendo terreno para concorrentes cujos lucros superavam os nossos. Mas, quando a relação entre oferta e demanda na China mudou, muitas empresas perderam a clientela e quebraram da noite para o dia. Já nós não só sobrevivemos como fortalecemos nossa posição no mercado. Levamos a sério as palavras de Peter Drucker: “O único propósito válido da empresa é criar um cliente”.

Hoje, um grande desafio é como criar clientes na era da internet. De novo, Drucker nos ajudou a achar a resposta. Suas palavras: “Na geografia mental do comércio eletrônico, a distância foi eliminada”. Esse insight nos levou a explorar maneiras de eliminar a distância entre nós e nossos clientes. O resultado foi uma rede de internet e marketing por telefone e uma rede de logística e serviços físicos que permitiu à Haier se superar na determinação de necessidades do cliente e na agilização da entrega de produtos e serviços pós-venda em zonas rurais e urbanas de todo o país.

Outra medida tomada foi inverter nossa tradicional pirâmide organizacional. A China é tão grande e variada - suas regiões diferem como se fossem nações - que somente o pessoal na linha de frente tem como entender a fundo as necessidades de clientes. Logo, funcionários em contato direto com o cliente devem estar no topo, e contar com o suporte de altos executivos para poder honrar o compromisso assumido com a clientela.

Por último, estamos tentando nos aproximar do cliente com a adoção do modelo just-in-time, que requer um alinhamento de todos os sistemas e processos da empresa às necessidades do cliente. Estoque zero é nossa meta. Já reduzimos o giro de estoques para menos de cinco dias - menos de um décimo da média no setor de eletrodomésticos da China. Não é fácil. Mas sentimos que isso é preciso para nos diferenciarmos. Há muitas empresas vendendo seus estoques; o que realmente vendemos é um serviço.

Na minha mesa, tenho uma foto do Titanic afundando. Nela, escrevi as seguintes palavras de Drucker para explicar por que certas empresas entram em crise: “As premissas sobre as quais a organização foi fundada e está sendo tocada já não condizem com a realidade”. é um alerta constante: toda decisão que tomo deve ser condizente com um cenário externo em eterna transformação. Se não for, as consequências podem até não aparecer de cara, mas, uma vez que o perigo surgir, será tarde demais: assim como o Titanic, minha empresa não terá tempo para mudar de rota.

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Zhang Ruimin é presidente do Grupo Haier, fabricante chinesa de eletrodomésticos.